Mosaico de Pensamentos e Textos

terça-feira, janeiro 04, 2005

A gente se acostuma

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e a não ter outra vista que não seja as janelas ao redor. E por não ter vista, logo se acostuma a não olhar para fora.

E porque não olha para fora logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender mais cedo a luz e à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem. A cochilar no ônibus por estar cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre violência.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir ao telefone: "Hoje não posso ir". A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. Abrir as revistas e ver anúncios. Ligar a televisão e assistir comerciais. Ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na rua na infindável caçada aos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro, à luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural, às bactérias da água potável, à contínua poluição da água no mar. A lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não colher frutas no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais. Em doses pequenas tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua o resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para preservar a pele. Se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta de tanto se acostumar, se perde de si mesma.

(Marina Colasanti)